O cuidado de Deus assume muitas formas
Cada vez mais eu me vejo envolto pelo cuidado de Deus e falando desse cuidado que expressa a natureza divina e nos cativa com seu amor. Esse cuidado assume muitas e diferentes formas e se expressa nas pequenas coisas da vida e no nosso cotidiano. Mas às vezes ele assume uma forma radical e dramática.
Quem já não ouviu falar da história de Elias e de como Deus o sustentou à beira de um riacho remoto, à base de pão e carne? Cardápio simples e suficiente, mas servido de um jeito estranho e nada apetitoso: “disk-corvo”! O problema é o corvo que, sob orientação direta de Deus, visita o profeta duas vezes ao dia: “Depois disso a palavra do Senhor veio a Elias: ‘Saia daqui, vá para o leste e esconda-se perto do riacho de Querite, a leste do Jordão. Você beberá do riacho, e dei ordem aos corvos para o alimentarem lá.’ E ele fez o que o Senhor lhe tinha dito. Foi para o riacho de Querite, a leste do Jordão, e ficou lá. Os corvos lhe traziam pão e carne de manhã e de tarde, e ele bebia água do riacho” (1 Rs 17.2-6).
Falemos cá entre adultos: nós celebramos o sustento que Deus dá ao profeta, mas seu jeito de fazê-lo não desce com tanta facilidade na garganta da nossa credibilidade. Seja porque não nos agrada a ideia de um corvo chegar carregando nosso almoço num bico que bicou sei lá onde, seja porque a nossa verve racional começa a fazer perguntas sobre este episódio. Então, preferimos contá-lo a um grupo de crianças crédulas e fascinar-nos com o seu cativamento!
Trazendo o "corvo" para mais perto
Certa vez, visitando os pais da Silêda no Maranhão, eu compartilhei com eles a minha estranheza acerca do corvo levando carne ao profeta. “Que tipo de carne?”, comentei.
Então a mãe dela, mulher de histórias e parábolas, falou: “Pois é... papai sempre nos contava daquela vez em que a família dele foi alimentada por um urubu!”
E contou uma experiência ocorrida lá pelo final do século 19, quando a família do seu pai vivia no interior do Ceará. A vida era difícil e atormentada. Às vezes, eles tinham de abandonar a casa por causa dos bandos de cangaceiros que tomavam conta de tudo. Eles chegavam e se instalavam na propriedade, sem dia marcado para ir embora. Quem não fugia, morria. E os donos acabavam debandando. A necessidade constante de fugir já fizera disso uma empreitada organizada. Suprimentos e utensílios básicos tinham de acompanhar a fuga, pois não se sabia quanto tempo a família inteira precisaria ficar escondida no mato.
Numa dessas fugas, a permanência no esconderijo prolongou-se além do previsto. Os dias passavam e nada de os bandidos irem embora. Os mantimentos estavam acabando, o nervosismo aumentando e todos vivendo a dificuldade de não saber o que fazer. E chegou o dia em que só havia feijão para cozinhar. Era o resto, e era só feijão mesmo. Nem sal havia!
Era costume na região salgar a carne e pendurá-la num varal para secar e virar carne de sol. Volta e meia os varais eram visitados por famintos urubus. Pois não é que naquele dia, enquanto o feijão cozinhava na panela, um bando de urubus sobrevoou o local e um deles, não conseguindo mais carregar o toucinho que havia roubado de algum varal, deixou-o cair justamente ali! Na pressa do roubo e sem muito tempo para fazer escolhas, ele havia agarrado um pedaço maior do que suas garras podiam transportar. Cansadas, elas se renderam e o toucinho despencou exatamente lá onde a família escondida olhava, ansiosa e faminta, para o feijão sem tempero!
Foi pura benção e absoluto cuidado de Deus! O feijão foi salgado e a refeição enriquecida pelo presente do urubu. Assim, não apenas Elias foi alimentado por um corvo. Aqueles rostos ansiosos e tensos, no indesejado esconderijo, nos confins do sertão nordestino, experimentaram o alimento trazido por um “corvo” como um providencial presente, tão inesperado e inusitado quanto necessário.
Dona Lídia me trouxe a história de Elias para perto. Para a sua própria família, ainda que para dias que já vão longe. Mas ela me ajudou a entender que a história de Elias é coisa de Deus e, sendo de Deus, é coisa para os nossos dias. A dificuldade é que muitas vezes não queremos nem conseguimos ver os corvos trazendo o nosso toucinho, expressão do cuidado e do amor de Deus. Mas que tem toucinho no feijão, isso tem.
Autor: Valdir Steuernagel, pastor luterano, trabalha com a World Vision International e com o Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas. www.juvep.com.br
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